*Por Amably Monari
Jujuy é mágico! Coisas acontecem por aqui, e vou contar a vocês como a estrada fala profundamente conosco. Toda estrada tem uma história, contada e vivida, para que nós, viajantes de moto, possamos aprender a escutar nossos instintos. Essa pode parecer a sensação mais perto da loucura que teremos.
Chamo esse momento de loucura saudável: a tal liberdade. Quando sentimos que devemos seguir um caminho específico, quando o corpo pede parada, quando encontramos alguém que nos guia para uma direção seja de rota ou emocional, esses momentos que não sabemos explicar, mas que sentimos e confiamos.
Instinto estradeiro, o meu ficou completamente aguçado.. No meio das montanhas me sinto no útero da Pachamama, esse lugar seguro, calmo e turbulento ao mesmo tempo que vamos nos transformando. Em Jujuy, sinto que rompi a placenta estradeira.
Na estrada aprendi a acreditar nos sinais do universo, eu tinha um desejo: chegar ao povoado mais alto da Argentina em moto; um planejamento: pedir uma moto adequada a offroad emprestada; e uma flexibilidade para aceitar que o desejo se tornaria possibilidade por meio de um planejamento que dependia de outras pessoas.
Perguntas, sugestões, informações chegavam de alguma maneira sobre o povoado argentino mais alto, e meu único pensamento era chegar lá de moto. Sonhei muitas noites, tentando chegar e não conseguindo respirar pela altura, despertava apavorada e ao mesmo tempo desafiada.
Com a ajuda e confiança de Franco Mizrahi, gerente, e Nicolás Mizrahi, sócio de Royal Motors SAS de Royal Enfield de Jujuy, o desejo tornou-se realidade por meio de um planejamento de quatro dias com uma Himalayan 2022 pelas montanhas de Jujuy.
A rota do circuito
Considerado de nível “muito dificil”, o circuito em off road pelas montanhas de Jujuy ainda não caiu na graça de turistas, ou seja, é aquele achado que só acontece se comunicando com locais.
A ruta 83 tem início na Puna parte central das cordilheiras andinas até as Yungas, selva tropical amazônica perpassando o Parque Nacional de Calilegua, uma das maiores áreas de conservação dessa região.
Construí um roteiro um pouco diferente do que costumo fazer, poucos dias, portanto, minha passagem por cada lugar seria rápida, tendo como grande objetivo a vivência do Offroad pelas montanhas, já que comparado com quilômetros não eram tantos, no entanto, levaria muitas horas para chegar em cada destino.
Dia 1: Ruta 09 pela Serra da Quebrada de Humahuaca – Salvador de Jujuy, Palpalá, Tilcara
Sai da Concessionária Royal Enfield, em San Salvador de Jujuy na quinta-feira na hora do almoço direção a Palpalá para o correio. Fiz essa parada porque sou embaixadora Foxcomm, e aproveitei o ride para testar dois intercomunicadores enviados a mim por meus parceiros. Depois disso, segui para Tilcara um total 135 km
Decidi pernoitar em Tilcara no Hostel Los Molles, que tem uma vista INCRÍVEL para as montanhas, nesse dia estavam comemorando 12 anos de Hostel, Diego e Candela, donos, me convidaram a estadia.
Dia 2: Ruta 09, Ruta 73 e Ruta 83 – Tilcara, Hornocal Cerro de 14 Cores – Caspala
De Tilcara a Santa Ana são 159 km, viagem que, segundo o Google Maps, leva cerca de 7 horas e 20 minutos para ser completada. Mas consegui realizar este trecho em menos tempo: 6 horas e meia.
Foram 25 km de off road de Humahuaca ao Hornocal – nesse trajeto no primeiro mirador já estava a 4.200 metros do nível do mar, comecei a sentir o Hipobarismo, conhecido como “Mal de Altitude ou Mal da Montanha”.
Quanto mais alta a altitude, temos menos oxigenação. E os sintomas incluem: dor de cabeça, cansaço, náusea ou perda de apetite, irritabilidade e em casos mais graves confusão mental e até mesmo coma.
No norte se usa muito mascar folhas de coca, uma planta milenar. Se pode comprar em todos os lugares, principalmente por mulheres que estão com vestimentas de cholas pelas ruas.
O uso é muito fácil, você coloca algumas folhas na boca, masca um pouco e a deixa na bochecha para ir sugando o sumo pouco a pouco. Pode ser usado no chá também.
Como não gosto do amargo, masquei um pouco da erva com um chiclete de menta e a deixava no canto da boca. Essa mistura me trouxe a sensação de que a pressão em minha cabeça e no peitoral provocadas pela altitude fossem retiradas com a mão, trazendo grande alívio.
Em tempo: é importante ressaltar que a folha de coca não possui nenhum efeito alucinógeno, o uso é puramente medicinal.
La Serranía del Hornocal – Cerro de 14 Cores
A paleta de cores nas montanhas mais impressionantes que já vi. Datada de 115 milhões de anos, suas cores foram forjadas pelo vento e chuva, e sua altura supera os 4.700 metros.
A montanha colorida percorre toda a serrania desde o norte do Peru, sul de Salta, altiplano boliviano e Jujuy.
Fiquei pouco tempo, comi uma pizza da noite anterior sem acreditar na magnitude daquela beleza e logo segui viagem, pois sabia que até ali tinha sido um pequeno treino com Himalayan no ripio.
Neve no topo da montanha
Agosto é a melhor época para fazer esse circuito, chamada de época de seca e vento do norte, pois é quando o céu está aberto e se pode ter uma vista panorâmica, porém eu fiz essa viagem no início de Setembro, completamente atípico nevar nessa época.
Iniciei o trajeto com sol e frio de 8ºC, com meu macacão de frigorífico me sentia bem protegida, no entanto quando comecei a atingir o topo da montanha com muita neblina impossibilitando a visão total da estrada sinuosa pedindo uma atenção redobrada.
Ao atingir 4.450 mm do nível do mar em Abra Azul, percebi que as pedrinhas que golpeavam minha viseira empoeirada eram pedras de gelo, os dedos das mãos congelados e dos pés já não sentia, pois minha bota arrebentou toda em uma parada brusca que tentei fazer, meias molhadas de atravessar o rio, ou seja, a situação estava crítica, no então era mais perto continuar o trajeto que retornar.
A cada quilômetro que eu seguia, menos visibilidade tinha da estrada e mais se via a montanha toda embranquecida de neve, fui tomada por uma comoção de afetos, eu nunca tinha visto a neve dessa maneira e principalmente em moto pelas montanhas de Jujuy, tudo parecia surreal.
As lágrimas percorriam as curvas do meu sorriso, e permaneciam frias em minha face, foi o gelo mais caloroso. Sentia que meu corpo se expandia com cada floco e ao mesmo tempo me integrava no mais profundo da montanha.
Aquele silêncio foi música para meu pequeno ser que se expandia nas alturas.
Não cheguei a Caspalá
Ao chegar no cruze de Caspalá e Santa Ana, com muita neblina e já eram 17h30 faltando mais 15 km para Caspalá, sentindo que os flocos de neve se agrupavam em meu corpo, na moto e uma crosta de gelo na viseira, fiz uma decisão de ir para o destino mais rápido, Santa Ana a 5 kms.
Cheguei no povoado onde toda a plantação estava coberta por neve, na Hospedeja de las Yungas, habitações feitas de barro, dentro estava aquecida, banho quente e uma recepção daquelas que aquece o coração.
Um pouco frustrada por não chegar ao povoado, Caspalá, mas compreendendo que tinha tomado a decisão mais segura. No entanto, nessa hospedagem encontrei uma senhora uruguaia que tinha conhecido em Tilcara e que havia chegado com um casal de uruguaios e ficamos maravilhados com as coincidências da vida.
Jeorge Arrambide, fotógrafo uruguaio, adora tirar fotos noturnas, me convidou para que depois de jantarmos no único restaurante de Santa Ana, saíssemos em moto para buscar lugares para um cenário fotográfico. Óbvio que aceite, sem me dar contar que estaríamos na escuridão de uma noite que nevava rs, nunca me imaginei nessa situação de modelar congelando, uma experiência surreal. Risos.
Gabi, é daquelas mulheres observadoras, atentas e guerreiras, que junto com seu marido construíram a primeira hospedagem de Santa Ana, um povoado Inca localizado no meio das montanhas. Em 1989, o povoado não apoiava o casal por não compreender a necessidade de um hotel e por não compreender o que eram “turistas”.
Hoje contam com 8 hospedagens e um restaurante, um posto turístico onde compartilham hóspedes para que todos os empreendedores locais possam girar a economia, algo realmente colaborativo.
Na manhã congelante, Gabi me convidou para tomar café da manhã em sua própria cozinha, sabe aqueles momentos que você se sente mais especial do que os outros hóspedes, tive o privilégio de sentar-me ao lado de uma mulher que acolhe as pessoas e crianças do povoado, que me contou sua história de vida que rimos de jogo de palavras que encontramos em nossa comunicação naquela cozinha que aquecia nossos corações.
A convidei para fazer parte das entrevistas do meu Projeto humanitário, Psicologia Por el Mundo que se tornara um documentário, aceitou prontamente e me contou sobre o sentido da vida, a vivência em um povoado inca e o que compreende por saúde mental.
Sai daquele povoado nevado, com o coração quentinho de que as conexões humanas acontecem na simplicidade do viver, a Himalayan coberta por uma toalha de mesa emprestada por Gabi, sentindo todo esse afeto não pestanejou de aquecer seu motor e me levar até o próximo destino.
Dia 3 – Ruta 83, Ruta 34 e Ruta 66 – San Francisco, Parque Calilegua a San Salvador de Jujuy
Ao terminar de subir as montanhas e começar a descida, a neve me acompanhava, e de repente a neblina foi permanecendo nas alturas e se abrindo uma selva diante dos meus olhos e o silêncio dos flocos de neve se tornando ruídos de ventos, cheiro de verde.
Era possível distinguir a parte da Puna da Yunga visivelmente, meu cérebro emocionado não podia acreditar na magnitude da natureza em fazer com que nos sintamos tão insignificantes e ao mesmo tempo tão privilegiados de assistir o espetáculo da vida.
Passar pelo Trópico de Capricórnio foi outro momento marcante, como um deslocamento geográfico de expansão mental, nesse momento conversei seriamente com a Himalayan, que sairiamos da selva mais selvagem que gente, e ela super companheira, me conduziu pelos caminhos mais lindos que já vi em toda minha vida, internos e externos.
Off-road sem experiência e perrengues
Foram quatro dias percorrendo 510 km, e 295 quilômetros dentro da selva, realmente sai mais selvagem que gente. Superei medos que não sabia que tinham e outros bem conscientes.
Sempre tive medo de altura, passar por pontes era um dos meus maiores pesadelos, agora imaginem percorrer 3 dias em off road onde de um lado era a montanha e do outro precipício, sozinha?
Chorei, gritei, perdi o fôlego de tanto medo, inclusive criei uma música mental para tentar superar esse momento e que meu cérebro pudesse acreditar que eu tinha coragem. “A coragem é o medo em ação.”
Descobri que meu medo de altura estava relacionado com um medo muito mais profundo que era de realmente ocupar o espaço de uma mulher muito bem sucedida profissionalmente e certa do que quer na vida, era como olhar a paisagem e focar no precipício.
Não posso dizer que superei meu medo de altura, mas com toda certeza que hoje ocupo meu próprio espaço na minha própria vida.
Recomendações para quem quer fazer off-road nas montanhas de Jujuy
Recomendo fazer esse circuito com um mínimo de conhecimento de off road, além de ser considerado nível muito difícil, eu teria usado melhor todas as funções que a Himalayan, por exemplo, tinha à minha disposição.
O off-road coloca em perspectiva para além do barro e poeira, de usarmos toda nossa neurodinâmica corporal e mental para superar cada pedra, buraco, curva, barro, rio e intempéries e pensamentos negativos, ou seja, o maior desafio é o mental.
Posso dizer que com certeza nesses três dias pelas selvas de Jujuy entrei em estado de Flow.
Quero deixar meus profundos agradecimentos a Royal Enfield de Jujuy e toda a equipe impecável, um cuidado impressionante e pela confiança em apoiar uma mulher motociclista brasileira que tinha um desejo de chegar ao povoado mais alto da Argentina em moto, concedendo uma Himalayan e todo apoio logístico.
E caso você esteja pela região e queira encarar uma viagem com uma proposta dessas, saiba que a Royal Enfield de Jujuy aluga motos para esta finalidade. Eles estão sempre de portas abertas para receber brasileiros que estão passando pelo norte da Argentina. Vale muito a pena passar lá para realizar a manutenção de sua moto, ou apenas tomar um café.
Se você se interessa em fazer esse percurso, recomendo que analise muito bem a moto que irá usar, épocas do ano e que o próprio circuito, diria para fazer de Humahuaca ao Parque Calilegua e não ao contrário, a vivência é outra e por ter mais descidas terá a certeza que não encontrara ônibus e 3×4 de frente.
Escutem a estrada, as pessoas que vão encontrando e confie nos moradores, a humildade de aprender com outres pode deixar sua viagem mais fluida e prazerosa.
Leve folha de coca, algo para comer e dependendo da moto que estiver, um galão de gasolina, porque de Humahuaca até San Francisco, ou seja, até sair da Selva não há possibilidade de abastecer. Leve pesos argentinos em espécie, pois os povoados não tem internet, não aceitam cartão e não tem sinal de celular.
E claro, vocês também podem entrar em contato comigo comigo para tirar dúvidas mais específicas também.
A montanha fala profundamente com quem está disponível para ouvir e disposto a se expandir. Eu fui e não voltei… Sigo voando pelas alturas de viver a liberdade de quem se é, superando-se a cada curva.
*Amably Monari (@psicoontheroad) é Psicóloga Clínica, ativista social e Mestre em Mudança Social e Participação Política pela USP. Atualmente, viaja de moto pela América Latina captando o sentido da vida Latina por meio da Saúde Mental com o projeto Documental Psicologia por el Mundo.
**A opinião dos colunistas não reflete necessariamente a opinião da revista