<p><strong>Nós, do tipo gente, humanos</strong>, somos a espécie que mais se modifica durante a vida, a que menos aceita a fatalidade e <strong>a única que pensa na vida como uma piscina de prazeres</strong>. Digo isso por conta de uma lembrança de duas rodas sobre minha infância.</p>
<p>Lá nos idos dos anos setenta, na minha casa, que fazia esquina com uma grande avenida em São Paulo, eu gostava de observar os carros e motos passando. Certo dia estávamos na varanda nesta nossa atividade preferida, e <strong>vimos um grande aglomerado de motos se aproximando, com faróis acesos e muitas buzinas soando</strong> sob aquele ensolarado céu dominical. </p>
<p>Era moto de tudo quanto era jeito e tipo, e os motociclistas da frente carregavam uma faixa com algo semelhante a “por uma vida mais digna e igualitária”. Meu pai, passou a mão na sua moto, uma <strong>Harley-Davidson Electra Glide</strong>, acho que 1974, me colocou em cima e fomos atrás daquela passeata.</p>
<p><img alt="Parafraseando o saudoso David Bowie em “Heroes”, “poderíamos ser heróis apenas por um dia…”" src="http://carroonline.terra.com.br//motociclismoonline/staticcontent/images/uploads/crianca_motociclismo_620x467.jpg" style="margin: 0px auto; display: block; width: 620px; height: 467px;" /></p>
<p>Pensando hoje, acho que havia umas cinquenta ou sessenta motos, <strong>mas, através de meus olhos de criança, eu via milhares.</strong> Pois é, a vida é mais legal pelo que olhamos, sem ver muito bem. Mas voltando à parada, começamos a nos encaminhar para a zona sul da cidade e percebemos que nos aproximávamos de uma grande comunidade que ali havia — comunidade é vulgarmente conhecida como favela.</p>
<p>As motos começaram a estacionar próximas a uma das entradas da comunidade. Imitamos o ritual e descemos da moto. Duas Kombis cor azul-calcinha passaram e estacionaram também logo à frente. Olhei para o lado e a rua começou a se encher de moradores e crianças do local. <strong>As crianças olhavam maravilhadas para aquelas motos, como se fossem carruagens do paraíso que acabaram de chegar a terra.</strong></p>
<p>Os motociclistas recebiam as crianças, que queriam montar nas motos, e umas poucas tiravam fotos com suas máquinas instantâneas com filmes (sim, amigon, o mundo já viveu sem celulares e internet). Foi quando as Kombis abriram suas portas e iniciaram a distribuição de brinquedos.</p>
<p><strong>Os pequenos não sabiam se ficavam com as motos ou se iam em busca de presentes. </strong>Acabavam fazendo os dois. Era próximo do dia da criança, 12 de outubro de 1979, se não me engano. Eu estava como se fosse em outra dimensão. Nesse dia eu nasci de novo, vi e conversei com gente igual a mim, só que com menos recursos.</p>
<p>Comecei a enxergar as fatalidades e as mudanças sociais como possibilidades de nossas vidas, como disse logo no começo do texto. Tenho certeza que a presença dos motociclistas com os valores sempre presentes de camaradagem mudaram a cor e a temperatura daquele dia. </p>
<p>Aprendi que o que significa para muitos uma pequena verba, um pouco de gasolina e muito calor no coração pode fazer a diferença. Voltei para casa feliz sem saber por quê. Leve sem perceber e maior sem aumentar de tamanho.<strong> Keep riding!</strong></p>