Almoçando em um restaurante nos Jardins, bairro de classe média/alta de São Paulo, não tive como não escutar um dizer vindo da mesa ao lado, onde um aparente balzaquiano com dois acompanhantes homens comentava em um tom relativamente alto: “Um dia, quando estiver tranquilo, com tempo, vou comprar uma moto estradeira e sair viajando por este país.”
E um dos seus parceiros de mesa retrucou: “O meu plano quando finalmente me aposentar é fazer aquilo que realmente me dá prazer, tô contigo, quero também comprar uma moto na aposentadoria e sair livre por aí.”Não tive como não parar de espetar a salada por um instante e refletir… Parece que há uma conexão entre “O Paraíso Perdido”, de John Milton, e a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust.
Aquela ideia e sensação de que num dia remoto nós já vivemos no Éden e a quase certeza de que um dia voltaremos a uma situação que desejamos. Deixe-me explicar. É como se tivéssemos a percepção de que um dia fomos felizes e fomentamos o pensamento de que, se um dia nos livrarmos das atribuições cotidianas, conseguiremos colocar em prática um projeto que está invariavelmente num futuro, quando voltaremos a ser felizes…
Ora, ora, meu caros grisalhos amigos, isso é uma procrastinação que pode ser até mesmo uma doença delirante. Convenhamos, há uma forte probabilidade de ele não ter coragem — por uma ou mais razões — de comprar uma motocicleta e fruir desde hoje os prazeres das duas rodas.
Trazendo para o meu ofício de escrevinhador desta coluna, parafraseio Pablo Neruda: “Escrever é fácil, basta começar com uma letra maiúscula e terminar com um ponto final. No meio você coloca as ideias.” É aí e que está a questão. Se ficar procrastinando, acabo por me satisfazendo com a expectativa de um maravilhoso texto, mas sempre adiando as ideias.
Com certeza, quem projeta, e apenas projeta ser um motociclista, não fica pensando na chuva que pega você no meio do caminho, no pneu traseiro furado no meio da estrada, o possível tombo vexatório em um passeio, lama, cheiro de vento tomando conta da roupa.
Na idealização, tudo beira a perfeição. Delírio. E isso de certa forma basta, pelo menos para contar aos amigos ou para fazer ruminantes repousarem. Não há problemas em um projeto de ter uma motocicleta, inclusive sonhar com marca, modelo, cor e acessórios. A questão é ficar para sempre no campo dos sonhos.
Lembro que décadas atrás sempre passava de ônibus na frente de uma concessionária de motos de uma marca famosa. Por vezes descia pontos antes e visitava o que seria a minha futura moto. Um dia não aguentei e me lancei no abismo da incerteza, entrei na loja, financiei a tal cabrita (cabritona na verdade) em 60 vezes, e voltei para casa com um “carnê-livro” e montado na moto que saiu dos meus sonhos e foi para o asfalto. Ah, sonhava também em escrever para uma revista sobre motociclismo.
Keep riding!
Texto: Roberto Severo